“Meio Século da Roça à Cidade”
(Um divisor de águas na bibliografia curraisnovense)
(Um divisor de águas na bibliografia curraisnovense)
Em outubro de 1970, quando Currais Novos comemorava o seu cinquentenário como cidade, o Dr. Antônio Othon Filho, advogado, promotor público, professor, Secretário da Mineração Tomaz Salustino S/A e homem de letras, publicava seu primeiro e único livro, intitulado “Meio Século da Roça à Cidade – Cinqüentenário de Currais Novos”. O livro poderia até ser apenas mais um na bibliografia curraisnovense, mas foi “um”, na realidade, e foi “um” que trouxe para a nossa bibliografia uma nova maneira de escrever, de relatar fatos, de biografar pessoas do povo que, até aquela data, não tinham histórias formalizadas em letras.
O prefácio, como não poderia deixar de ser, é do Mestre Manoel Rodrigues de Melo, autor de outro épico intitulado “Patriarcas e Carreiros”, que tem Currais Novos como célula-mater da epopéia vivida pelos nossos antepassados, dos tempos glórios e inglórios do pater-familias, equivocado ou não, mas que contribuiu em muito para a nossa formação moral, principalmente de nós, seridoenses, mestiços de uma raça espetacular.
Sem querer dar pretensões ao seu autor, que era um homem modesto, “Meio Século da Roça à Cidade” está para Currais Novos assim como “São Jorge dos Ilhéus”, “Gabriela”, “Terras do sem fim” e “Cacau” estão para a Bahia; da mesma maneira como “Os Brutos”, do seu parente José Bezerra Gomes, se insere na bibliografia regionalista brasileira, paralelo a obras imortais de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Raquel de Queiróz, José Lins do Rego, etc. A saga dos nossos antepassados, suas lutas e seus anseios, suas derrotas e suas vitórias estão ali retratados, de maneira simples, com linguagem coloquial, bem ao estilo do seu autor, uma pessoa simples, de gestos simples, mas que tinha a visão futurista, tanto que, ao inciar o primeiro capítulo, logo denunciou: “Jamais tive pretensões a escritor. Entretanto, debruçando-me para a velhice, entendi deixar para os pósteros algumas recordações de minha mocidade, da meninice, inteiramente passadas na ILHOTA...”.Fala e retrata a Ilhota, fazenda, Ítaca de sua epopéia, qual Homero, relembrando fatos e gentes de sua meninice e adolescência. A sua Ìtaca, a Ítaca retratada, a Passárgada revivida e o País de Cocagne. Fala ele da Ilhota como o seu “El Dorado”, preso que ainda estava as suas raízes, as suas entranhas, as suas vísceras...
Dr. Nithom, como era conhecido popularmente, viveu a nascência de uma urbe ruralista a projetar-se anos mais tarde numa cidade futurista, a par do apogeu mínero-metalúrgico, que teve na figura do Dr. Tomás Salustino, seu mais forte esteio. Conheceu, na essência, suas ruas e vielas, seus becos, suas avenidas, seus prédios primitivos, seu mercado, sua igreja, seu comércio e seus primeiros comerciantes – mercadores de um tempo ímpar, que muito contrubuíram para á formação do nosso primeiro arruado.
Era descendente dos fundadores da urbe, repovoadores que aqui chegaram nas eras de 1716, quando o território que hoje abriga o centro da cidade ainda revivia, em cinzas fumegantes, as atrocidades da chamada “Guerra dos Bárbaros”, que me foi relatado, certa vez, pelo Dr. José Bezerra Gomes, ainda no início dos anos 80, quando se dirigia ao forum municipal, tendo como testemunha, seu primo e saudoso amigo Boés (Moisés Bezerra).
Contou o Dr. Nitom a “história daqueles que não tinham história”; aqueles a quem a memória sempre esqueceu. Relatou fatos corriqueiros do cotidiano de uma Vila que lutava para ser cidade, e que só foi reconhecida e emancipada em 1920, pelo apadrinhamento do Deputado Francisco Ivo Cavalcante, a quem Currais Novos ainda deve tributos.
Falou de sua infância, adolescência e juventude; falou do seu amadurecimento, dos pais, avós, bisavós, casamento e filhos. Falou de uma época áurea em que ainda existia o respeito, onde a moralidade reinava e tinha como sustentáculo, a educação “de casa”, fomentada pelos pais, na exuberância dos ensinamentos e práticas que eram repassados, ás vezes rígidos, é bem verdade, mas verdadeiros e eficientes, que hoje, infelizmente, fazem falta. Não quero referir-me á ignorância, a brutalidade e a incompreensão, vividos também naqueles dias; mas a decência, a rigidez nos atos e a sabedoria transcendente, provinda da rusticidade de tempos bem anteriores, onde a palavra ou um simples gesto valiam mais que milhões e sermões.
O livro não tem índices remissivos. O seu autor situa o capítulo de acordo com o teor de sua memória, de acordo com a sua lembrança, daí advindo informações geniais. Por exemplo, quando fala de Maria Mouca, escrava alforriada bem antes da lei Áurea ser assinada; relembra o seu trisavô assassinado por escravos num passado distante, naquelas terras estranhas e difícies do “Caracará”. Quando fala do primeiro carro a cruzar a Rua Capitão-mor Galvão, fala de um ramo que “apanhou”, observando esse mesmo carro e sua gloriosa passagem pela primeira rua e do debácle desse primeiro carro na então Vila de Riacho, hoje Tangará.
Foi prefeito o autor, gestor público nos tempos das intervenções da era Vargas, e como prefeito procurou sempre a satisfação da população, inclusive empreendendo várias modificações em nossa feira livre, o que causou vários incidentes, mas que para o município, foram de melhorias válidas.
Disse em seu livro que, “fui menino sem vontades, jovem sem aventuras e homem sem ambições”. Retrata aí, de sua própria pena, o caráter decisivo de um homem no encontro de si mesmo, no ego coloquial daqueles que nunca procuraram satisfações que não o satisfizessem primeiro o espírito, para depois satisfazer o corpo e suas potencialidades.
A sua história é, com certeza, a história de milhares de sertanejos; filhos, netos, bisnetos e trinetos de sertanejos do grande semi-árido nordestino, que nunca estiveram afastados do seu meio diante da dura realidade dos seus dias. Era sim um sertanejo, um sertanejo que soube tão bem escrever a saga daqueles que aqui primeiram chegaram, e não lhe importava que fossem “coronéis”, “majores”, “capitães”, ou mesmo os almocreves, caminheiros, vaqueiros, tangerinos, enfim, todos aqueles que aqui aportaram nos difíceis dias do nosso começo.
“Meio Século da Roça á Cidade”, com 37 anos de existência, é um livro que todo curraisnovense tem a obrigação de ler, pois é um fomentador de idéias, e deu ao nosso povo uma nova maneira de pensar e de repensar o nosso dia-a-dia, o nosso começo, os nossos tropeços, a nossa lida diária em busca de um amanhã sempre praseiroso e honesto, como bem queriam aqueles que ainda hoje se situam no esplendor das nossas memórias.
Parabéns ao saudoso Antônio Othon Filho, um curraisnovense da gema e antenado com o nosso presente/passado/futuro. Parabéns a Currais Novos por ter essa obra ímpar em sua bibliografia.
a) Volney Liberato
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